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“Quando se fala em transexualidade imediatamente o senso comum pensa em mulheres trans e travestis. Dificilmente se fala em homens trans. É como se nós não existíssemos. Cresceu a barbinha, pronto! Torna-se invisível fisicamente porque ninguém questiona uma barba. O menino pode ser pequeno, fragilzinho, ter rosto delicado, mas… tem barba: é homem.” Leo Moreira Sá. Ator de teatro, cinema e TV. Homem trans.
Nesta missão institucional de fazer um especial de produção do conhecimento sobre a transexualidade para comemorar o Dia Nacional da Visibilidade Trans – 29 de janeiro – desde a perspectiva transversal dos quatro eixos de atuação da Integra Diversidade, nós, do eixo de Gênero, escolhemos falar sobre homens trans. Com uma enorme invisibilidade social, a transmasculinidade é um aspecto muito relevante de ser conhecido. Não há abordagem de gênero completa se não se abordarem as questões das masculinidades. Não há abordagem completa sobre LGBTI+s se não se abordarem, também, os homens trans. E quem melhor para falar nessas questões do que eles mesmos, desde seu lugar de fala? Por isso, entrevistamos três homens trans com grande atuação nessa causa para falarem sobre as suas experiências.
Passabilidade. Esse foi o conceito principal que percorreu as três entrevistas. E do que se trata? Como bem resumiu a incrível ativista trans Daniela Andrade: “é quando a pessoa trans é lida pela sociedade como se fosse cis*”. É quando a pessoa diz: “Nossa! Você nem parece trans! Nunca teria imaginado”. E por que esse conceito foi tão mencionado? Bom, porque todos os entrevistados concordam com que logo após que a testosterona é aplicada, ela começa ocasionar mudanças corporais bastante notórias, dentre elas, o crescimento de pêlos no corpo e no rosto. Uma vez o homem trans tem barba, ele é lido socialmente como homem, como bem disse o Leo.
E o que isso significa para eles? Significa que muito provavelmente não sofrerão com a estarrecedora violência que diariamente vitimiza as suas irmãs – termo utilizado em várias ocasiões – mulheres trans e travestis. Significa que eles não terão que lidar com os assédios e ameaças que as mulheres todas – cis ou trans – devem lidar. Ele será objeto de um respeito e uma autoridade dos quais nunca – antes da transição – desfrutou. Mesmo que isso também acarrete outros perigos: há a possibilidade de que, quem ficar sabendo da sua transmasculinidade vai se sentir “enganado”, ofendido. Alguém pode querer partir para o estupro corretivo, aquele que quer mostrar pela força bruta que a pessoa “virou” homem porque não sabe o que é um relacionamento sexual com um homem “de verdade”, risco que compartilham com as mulheres lésbicas. Ou, então, vai querer testar se é homem “de verdade” partindo para a agressão física, provando no ringue de boxe que existe na cabeça da pessoa se dá conta de medir forças. Quem não quereria passar despercebido? O Homem gay não vai mais olhar para você, mulher cis não vai te querer, o homem hétero vai querer, mas só para bater…
E é justamente dessa passabilidade que a invisibilidade vem. Quer coisa melhor do que viver tranquilamente sem ninguém questionar o tempo todo o seu gênero? Errar o seu pronome? Um dos problemas origina-se do fato de que nem todo homem trans quer ou pode tomar testosterona ou quer/pode fazer a mastectomia – remoção das mamas -, ou quer/pode fazer qualquer tipo de cirurgia nos genitais. A confusão causada por esses “sinais misturados” faz com que muitos dos que atingem a passabilidade prefiram ficar no conforto e desfrutar das chances de “ascensão ou trânsito social. E, com isso, vem a reprodução de comportamentos machistas em muitos meninos trans. É uma herança social, uma validação dessa condição de ser homem”, diz Tryanda Verenna, consultor de viagens e ativista da causa transmasculina. “Tem que se admirar as mulheres. Todas. Elas são mais incisivas, ‘raçudas’, tem garra, vão atrás da luta. Devemos às mulheres trans e travestis o mérito de ter colocado as pautas desta população na sociedade. Nós homens trans, enquanto isso, temos que lidar com a única referência que existe para a maioria: o Thammy Miranda. Que, diga-se de passagem, não é referência de quase ninguém na comunidade transmasculina”, completa o Tryanda.
“A partir do momento em que a pessoa se defronta com a realidade de que, ao ser homem trans, as pessoas vêm com cobranças: tem que ter necessariamente uma idéia estética masculina falocêntrica em que se apresenta a questão da voz, da barba, do corpo, e essa pessoa terá que satisfazer essas cobranças para poder ter acesso ao mercado de trabalho, acesso à afetividade, a uma vida plena. E uma vez que esse homem trans tem acesso a esses espaços, ele torna-se invisível. E isso não é só uma questão que pertence ao segmento LGBT+. Agora no Dia Nacional da Visibilidade Trans, temos que partir para um diálogo muito claro com as empresas; porque se fala da questão da integração, mas não se fala das posturas machistas, misóginas e LGBTfóbicas que acontecem dentro do ambiente corporativo. Ficam me perguntando que banheiro a pessoa trans tem que usar, ‘nome social é apelido?’, ‘a sua barba é de mentira?’. As pessoas ficam questionando… e são empresas grandes!”, aponta Luiz Fernando Prado Uchoa, jornalista e palestrante. Homem trans gay – Sim! Nem todos os homens trans sentem-se sexualmente atraídos por mulheres! -.
E o que acontece quando um homem trans é contratado por uma empresa? Geralmente tudo corre bem – caso tiver realizado a mudança na documentação e não falar da sua transexualidade. Um problema prático vem na hora, por exemplo, de fazer o plano de saúde. “O homem trans é um homem com algumas necessidades específicas como: precisar ir à/ao ginecologista, ter acesso aos direitos reprodutivos se ele quiser engravidar, acompanhamento endocrinológico… Se a gente não fizer mudanças estruturais nos ambientes profissionais, escolares e também nos múltiplos ambientes sociais, a gente não vai conseguir fazer com que esse homem trans seja visível”, completa o Luiz Fernando. Como o Tryanda Verenna destacou: “os planos de saúde mais engajados ainda operam na base da ‘gambiarra’ para conseguir dar atendimento digno às pessoas trans. Precisa que as empresas contratantes e as provedoras de serviços de saúde operem com mais informações, como acontece de forma muito melhor no setor de saúde pública”.
Como fica bem claro, é imprescindível que a nossa sociedade se informe, dialogue, enxergue a necessidade de mudanças que favoreçam, também, a inclusão de todas as pessoas trans. Em um mundo que precisa cada vez mais de atração e retenção de talentos, de inovação, de adaptabilidade e leitura de cenários diversos, não podemos mais nos permitir manter estruturas e processos excludentes que deixam de fora tantas pessoas capazes e valiosas. É para isso que trabalhamos diária e incansavelmente na Integra Diversidade através dos nossos talentos e das nossas parcerias. Para, finalmente, não ser mais necessário ter consultorias que trabalhem no óbvio: todas as pessoas são valiosas e diversas. Todas merecem oportunidades equitativas e respeito.
Keyllen Nieto. Fundadora e Consultora Sênior da Integra Diversidade.
Contribuíram para este artigo:
– Leo Moreira Sá (Foto no canto superior esquerdo). Ator de teatro, cinema e TV. Palestrante. Ativista da causa trans. Ativista da causa dos animais. Perfil: https://www.facebook.com/leo.moreirasa
– Luiz Fernando Prado Uchoa (Foto no canto inferior esquerdo). Jornalista e palestrante. Perfil: https://www.facebook.com/LuizFernandoPradoUchoa
– Tryanda Verenna (Foto no canto superior esquerdo) . Consultor de viagens. Formado em Publicidade e Propaganda. Coordenador da página do Instagram: @homemtransbr
* Pessoa cis: se você não sabe que é, provavelmente você é uma pessoa cisgênera (cis), definição criada pela Maite Schneider. Significa que você não é uma pessoa trans. Se você não se identifica como homem trans ou como mulher trans ou travesti, então você é um homem cis ou uma mulher cis.