Por Siméia Mello, Consultora de I&D.
No último dia 9 de março, lançamos, na PUC-SP, o livro Raça e Gênero: discriminações, interseccionalidades e resistências. Uma coletânea de diálogos ricos entre pesquisadoras e pesquisadores negros e não negros a fim pensarmos conjuntamente o lugar das mulheres negras na sociedade brasileira e, a partir daí, também possibilidades.
Logo de início, ainda no processo de organização da coletânea, esbarramos na dificuldade em encontrar professoras negras para falarem sobre o tema dentro da instituição, o que revelou como a academia brasileira, espelhando todos os outros espaços de poder, ainda é branca, apesar de não ser esta a cor predominante da sociedade brasileira.
Isso não quer dizer que não estamos lá, pois estamos. Nas últimas décadas, seja por meio de lutas individuais e solitárias, num embate bastante desigual, oneroso e doentio as nossas existências; seja pela luta do movimento negro que, dentre tantos ganhos, conquistou ações afirmativas como as cotas raciais, é possível constatarmos uma mudança nas cores das universidades brasileiras – ocupação indispensável para conquistarmos novos espaços na sociedade. Porém, quando analisamos o quadro de docentes, o número de professoras e professores negros “ainda não ultrapassou os 16%,[1] mesmo sendo esta a cor da maioria da população brasileira”. Esse percentual só não é pior do que o 4,7% do quadro de executivos negros no Brasil e do 0,4% de mulheres negras nesses cargos.[2]
Esses dados revelam como o binômio raça-gênero nos coloca em esquinas atravessadas de vulnerabilidades, violências e discriminações. Afinal, somos mais suscetíveis à violência e à pobreza aqui ou em qualquer outra parte do mundo.
De acordo com o Atlas da Violência (2019)[3], no Brasil, em 2017, foram registrados 4.936 assassinatos de mulheres, com um aumento de 20,7% na taxa nacional entre 2007 e 2017. Ainda segundo o Atlas, esse aumento se deu por conta do número de homicídios de mulheres negras, que cresceu mais de 60% em uma década, em comparação com um crescimento de 1,7% de mulheres não negras. Além disso, no mercado de trabalho, somos as que ganham menos e as que detêm a maior taxa de desemprego, segundo outro estudo do Ipea de 2017.[4]
Mas não para por aí, porque as violências sobre nós também afetam nossa juventude, já que são os filhos de mulheres negras, assim como eu, os mais suscetíveis a morrerem violentamente. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. Repito. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil.
E o que esses dados podem nos revelar para além de estatísticas apenas? Que o Brasil ainda não resolveu seu passado colonial, muito pelo contrário, ele está vivo e, pelo que tudo indica, renovando-se e adaptando-se a todo momento nas estruturas “ditas”democráticas. Ainda, diz sobre a sociedade estruturada pelo racismo e pelo patriarcado que nos colocam em lugares tão espinhosos e, mesmo com toda a denúncia que tais dados confessam, a estrutura social mantem-se sobre os nossos ombros, marcando-nos, limitando nossos passos, nossos sonhos, nossas experiências humanas.
É sobre os nossos ombros que se encontra o peso de uma sociedade machista, racista e classista e, portanto, são esses lugares repletos de privações e perdas que também se encontram possibilidades inúmeras. Afinal, sobreviver e viver em categorias sociais que não foram construídas por nós, nem para nós, enche nossas experiências de conhecimentos e saberes sobre viver aqui e lá que podem nos ajudar a pensar outra sociedade.
Viver em espaços – físicos, sociais e simbólicos – tão diminutos nos permite construir saberes e vivências que qualquer ideia de uma sociedade mais justa precisa levar em consideração. Mulheres negras e indígenas não são feitas apenas de faltas. E, como bem diz Angela Davis, “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.
Portanto, seja para pensar políticas públicas, políticas de inclusão e diversidade em ambientes corporativos, inovações que extrapolem o que está dado, análises e retratos minimamente reais sobre a sociedade brasileira ou até mesmo perspectivas em tempos de crise e pandemia, nós, mulheres negras, precisamos estar lá.
Mulheres negras têm se organizado de forma colaborativa desde sempre, já que elas não só necessitam desse apoio em suas vidas como sabem da importância de construírem parceiras. Ainda, vivendo em lugares marginais, precisam a todo tempo construir conhecimento sobre si mesmas e possibilidades de ultrapassarem os limites impostos a elas, como também compreender o que se diz e se faz no centro, pois é lá que os donos do poder vivem e decidem sobre suas vidas.
Nossas vidas transpassadas por violências também nos permitem construir personalidades potentes, já que, desde nossa chegada aqui como mulheres escravizadas, estamos lutando por sobrevivência e por dignidade, tentando romper as barreiras impostas a nós. À exemplo, aquelas com as quais tenho o prazer de compartilhar minha existência. São mães, acadêmicas, artistas, construtoras de suas próprias histórias.
Sim, somos abundantes e cheias de dignidade. Vivemos e falamos de diversos lugares e formas e não nos enquadramos em categorias tão ínfimas construídas por quem não consegue ver o óbvio, que mulheres negras sempre resistiram e sempre resistirão, seja aqui ou em qualquer outro lugar, como nossas experiências, quando vistas por olhares que transcendem o racismo e seus desdobramentos, comprovam.
Afinal, como diz Conceição Evaristo, uma das nossas homenageadas do livro que abre esta discussão, “Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”.
[1] Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/guia-de-carreiras/noticia/2018/11/20/negros-representam-apenas-16-dos-professores-universitarios.ghtml>.
[2] Disponível em: <https://www.ethos.org.br/cedoc/perfil-social-racial-e-de-genero-das-500-maiores-empresas-do-brasil-e-suas-acoes-afirmativas/>.
[3]Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/>.
[4] Disponível: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=29526>.