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E se dissermos que há um grupo de pessoas que se reúne com periodicidade, de forma organizada, para discutir assuntos como preconceito, discriminação, e formas de inclusão possíveis para a atualidade? Um grupo que se propõe a executar projetos que envolvem inovação e reutilização de elementos de forma criativa e sustentável, mas que as empresas e instituições ainda ignoram. São pessoas versáteis e adaptáveis às mais variadas situações, executam os projetos com alegria e determinação, mas que mesmo assim, estão fora do mercado de trabalho.
Acreditamos que, lendo o perfil deste grupo de pessoas, a maioria das empresas se interessaria em tê-las em sua equipe, afinal, funcionários criativos, pró-ativos e com uma proposta de projeto sustentável são o sonho de qualquer liderança que esteja antenada às necessidades do mercado atual. Mas qual será a surpresa de quem lê este artigo ao saber que estamos nos referindo justamente à fatia mais invisibilizada da população brasileira: as pessoas trans negras?! Se fizermos o exercício de pensar em pessoas trans negras que ocupam cargos de poder ou estão na linha de frente de alguma instituição, certamente não seremos capazes de formar uma lista. Isso porque não estamos acostumados a vê-las em lugares comuns aos “nossos”. Grande parte desta população é empurrada para a marginalidade e prostituição por falta de oportunidades. São exatamente estes obstáculos que a própria sociedade coloca, que fazem com que as pessoas trans negras sejam cada vez mais criativas. Existir em um corpo político, ou seja, um corpo que só por sua presença já trás variadas leituras possíveis de resistência e vitória, faz da criatividade uma questão de sobrevivência. É diante desta necessidade que surge o movimento Ballroom.
Desconhecido da grande maioria da população, o movimento ballroom fica mais acessível quando nos referimos ao videoclipe de Madonna, “Vogue”. Por conta disso, o estilo Vogue é até hoje associado à cantora, como se tivesse sido ela a criadora do mesmo. Mas não. Vogue (um estilo de dança que envolve movimentos rápidos e definidos com os braços e mãos) foi criado dentro do movimento ballroom. Mas afinal, de que exatamente estamos falando?
O movimento ballroom surgiu oficialmente na década de 80 (embora haja registros de eventos desde a década 60) nas periferias dos Estados Unidos, criado por pessoas LGBTs negras, na busca de construir um espaço para que pudessem se encontrar, e, de forma segura promover a diversão e a discussão de assuntos importantes para elas que tinham seu acesso negado a espaços públicos. Com uma maioria de drags e pessoas transexuais, este grupo passou então a realizar encontros em que ocorre uma espécie de concurso, as chamadas “batalhas”, que unem dança, música e moda, com foco na criatividade.
Com o tempo, essas batalhas se espalharam pelo mundo e estão cada vez mais vivas em muitos lugares, especialmente no Brasil. Em São Paulo, as periferias e o centro se unem em eventos grandiosos, cheios de diversidade. Neles, o desafio é criar conceitos, roupas, maquiagem, figurinos complexos e coreografias, com aquilo que se tem. Dinheiro não é a matéria prima, afinal, já sabemos que grande parte das pessoas trans negras têm dificuldade de se inserir no mercado de trabalho e isso afeta a situação financeira das mesmas. E é aí que está a chave do sucesso: sem dinheiro, as pessoas trans e as travestis são o grande destaque destes eventos, com figurinos criativos que enchem os nossos olhos pela beleza e funcionalidade. Produzidos de forma sustentável, a base da maioria deles é a reutilização de materiais e de roupas que, a princípio, seriam muito singelas. Claro que há, entre estas pessoas, algumas que possuem acesso a roupas mais caras, e sempre surge uma ou outra peça luxuosa, mas, pela concepção do próprio evento, isso não faz a menor diferença, o que conta mesmo é a funcionalidade do “look” diante da proposta de cada categoria de batalhas, além da resistência do figurino que não pode desmontar durante a apresentação da candidata ou candidato, que dança e se apresenta com movimentos ousados. Aliás, dentro do movimento Ballroom, encontram-se exímias dançarinas e dançarinos, que ensaiam exaustivamente para executarem movimentos impressionantemente expressivos.
Outro ponto fundamental é o engajamento social do movimento, que está sempre discutindo pautas como os direitos das pessoas LGBTs, em especial das pessoas trans, e outras questões como os acessos, a visibilidade e as formas de continuar mantendo estes encontros cada vez mais vivos, através de trocas e intercâmbios com outros grupos que fazem parte do movimento ballroom no Brasil é no exterior. Na Ballroom Vera Verão 2020, realizada no dia 25 de janeiro com a organização do Coletivo Amém e da House of Zion, por exemplo, havia uma campanha sobre o HIV sendo realizada durante o evento, com “teste rápido” gratuito, além de orientação sobre prevenção. Sem dispor de grandes investimentos financeiros, mas com muita organização e engajamento, vários apoios e parcerias são realizados para que os eventos continuem acontecendo.
É, portanto, surpreendente que as empresas e instituições estejam perdendo estas pessoas com uma inteligência e criatividade fora do comum. Como é possível que possam barrar-se os acessos de determinado grupo de pessoas pelo gênero e cor da pele? Inclusão e diversidade precisam deixar de ser conceito e se tornar prática. É urgente que tenhamos mais representatividade trans no meio corporativo. Queremos ter mais nomes como o de Yasmin Vitória, mulher trans negra que é gerente de relacionamentos em uma grande empresa e se destaca por sua atuação brilhante no mercado, lidando diretamente com seus clientes, explicitando todas as vantagens que só a diversidade pode trazer.
Gabi Costa e Gabriela Santos. Consultoras do Eixo de Raça e Etnia.