Por Arlane Gonçalves, Consultora de Diversidade, Equidade e Inclusão
No dia 21 de março de 1960, na cidade de Joanesburgo, África do Sul, 20 mil pessoas negras protestavam contra a Lei do Passe, que as obrigava a portar cartões de identificação, especificando os locais por onde podiam circular. No bairro de Shaperville, as pessoas manifestantes se depararam com tropas do exército. Mesmo diante de uma manifestação pacífica, o exército atirou sobre a multidão, matando 69 e ferindo outras 186.
Esta tragédia ficou conhecida como o Massacre de Shaperville. Em memória a ela, a ONU (Organização das Nações Unidas) instituiu 21 de março como o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial.
Este marco emblemático, além de ser um alerta histórico para a nossa consciência antidiscriminatória, é também uma vívida oportunidade, dentro do mês de março, de revisitarmos a pauta de Equidade de Gênero. Especialmente o como ela vem se desenvolvendo dentro das organizações.
No geral, é comum que empresas iniciem suas ações de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) a partir da Equidade de Gênero. Notadamente quando se trata de mulheres na liderança, eventos são realizados, metas são estabelecidas, programas de aceleração são implementados, histórias de “mulheres de sucesso” são exaltadas. No Brasil, país no qual DEI ainda é uma dinâmica recente, há empresas com ações de Equidade de Gênero datadas da década de 80, comprovando que este é de fato o maior ponto de partida.
Entretanto, quando olhamos para as mulheres contempladas por estas ações, encontramos um tipo muito específico: a mulher branca. Majoritariamente branca, cisgênero e heterossexual. Recentemente, inclusive, saiu uma pesquisa sobre as lideranças das novas áreas de Diversidade e lá estava cravado: a maior porcentagem delas é de mulheres brancas.
E qual é o porquê disso, tendo em vista que, dentre outras coisas, a maioria da população brasileira é de mulheres negras?
Destaco aqui dois grandes porquês e dois grandes desafios.
O primeiro grande desafio que precisamos enfrentar é o não reconhecimento da Questão Racial como uma questão de fato – decorrente diretamente da perpetuação do mito da Democracia Racial (segundo o qual as “três grandes raças” do Brasil convivem em total harmonia). Não é porque o país ou a organização reconhece a fatualidade da Inequidade de Gênero que, automaticamente, reconhecerá o da Inequidade Racial.
A título de exemplo, pouco tempo atrás (então bem depois da década de 80), Déia Freitas, do podcast Não Inviabilize, publicou nas suas redes sociais uma vaga afirmativa para mulheres negras e indígenas. A repercussão foi imensa: muitas pessoas alegando discriminação por parte do anúncio, e Déia tendo inclusive sua conta de e-mail hackeada. Muitas mulheres, especialmente brancas e especialmente parte de iniciativas de Equidade de Gênero, engrossaram este coro, alegando se sentirem discriminadas.
Portanto, há sim um grande passo que a sociedade e as organizações precisam dar para transformar a pauta de Equidade de Gênero em uma pauta verdadeiramente Antirracista. Essas duas vertentes não se encontram de forma automática – é necessário um esforço específico para que os movimentos em prol da inclusão de mulheres incluam outras mulheres além das brancas.
O segundo grande desafio está no reconhecimento da Interseccionalidade como um ponto de destaque. Por Interseccionalidade, entendemos o cruzamento das identidades do indivíduo. E, especialmente quando este cruzamento é de identidades minorizadas, há também um cruzamento e uma intensificação dos desafios de inclusão.
Isto equivale dizer que os esforços para incluir mulheres brancas não é o mesmo para incluir mulheres negras. Ou que os esforços para incluir mulheres cis não são os mesmos para incluir mulheres trans. A Interseccionalidade pressupõe destaque: estratégias específicas para solucionar desafios específicos.
O desafio é sair do pensamento generalista, que coloca mulheres dentro de uma única categoria, como se houvesse uma mulher universal. O desafio é identificar quais são as particularidades para os diferentes grupos de mulheres e em quais níveis de intensidade eles vêm historicamente sendo limitados, restringidos e excluídos da participação social. E, a partir disso, implementar movimentos específicos e contrários a esta torrente de limitação, restrição e exclusão.
Isso faz com que a Gestão de DEI fique, sim, bem mais complexa. Não basta um tipo único de abordagem mais. A abordagem da Equidade de Gênero a partir da ideia de mulher universal é insuficiente e excludente. Para que passe a ser efetivamente inclusiva, é imperativo que a estratégia de Equidade de Gênero se desenvolva a partir de estratégias Antirracistas.
O Massacre de Shaperville e tantos outros eventos históricos excludentes que incidiram sobre as pessoas negras – na África do Sul, no Brasil e nos países Afro-Diaspóricos – incidiram sobre as mulheres negras em somatória a todos os demais eventos excludentes que as afetaram por ser mulheres.
Estes pressupostos – de que a questão Racial é sim uma questão para além da, e presente na questão de Gênero, e de que o cruzamento destas duas identidades minorizadas é sim uma demanda de atenção específica – precisam estar gravados com ênfase em nossas mentes. Sempre e especialmente no exercício da Diversidade, Equidade e Inclusão dentro das organizações.
Nós só teremos uma Equidade de Gênero efetivamente Antirracista quando agirmos com intenção e especificidade sobre as Interseccionalidades de Raça. Até lá, tudo o que fizermos em prol da inclusão de mulheres ainda deixará a maioria de fora – e por isso será insuficiente e manteremos as estruturas excludentes de fato.