Por Verónica Gálvez Collado, mulher cisgênera, imigrante chilena, lésbica, artista, ativista, consultora de DEI na Integra Diversidade e membro da Rede de Mulheres Imigrantes Lésbicas, Bissexuais e Pansexuais (Rede Milbi+)
Quando cheguei ao Brasil, soube o que significava viver como imigrante e passar a reconhecer as diferentes culturas, línguas e, sobretudo, desigualdades que existem por falta de acesso à informação e oportunidades no trabalho formal. Por ser latina, mas branca, algumas possibilidades no cotidiano se abriram mais facilmente para mim. Contudo, essa passabilidade só se sustentava até eu abrir a boca: quando me ouviam falando, as mesmas reações preconceituosas vinham à tona.
Com meus documentos regularizados – lembrando que na prática, a regularização não garante os direitos e proteção social – e sem carteira assinada, fui rejeitada em vários empregos pela dúvida do meu estado migratório, ouvindo frases tais como “você está ilegal no Brasil?”, “você pretende estar aqui por muito tempo? não queremos ter problemas com você, não sei se posso contratá-la”, “você não é de aqui, né?”, “é que você não entende como que é aqui…” até frases como “pessoas estrangeiras vem tirar o trabalho das pessoas que nasceram neste país”.
Entendemos que estas afirmações são reproduzidas por falta de informação e conhecimento, como também pela falta de empatia. Nós, pessoas que chegam ao Brasil, somos uma parcela pequena – cerca de 1,1 milhões – em comparação com as pessoas brasileiras que moram no exterior – em torno de 4,2 milhões. Por isso (e por vários outros motivos), continuar a reprodução de que viemos para roubar trabalhos ou procurar ter mais privilégios em relação às pessoas brasileiras não são corretas. É importante entender que estamos aqui para colaborar com o desenvolvimento econômico do país, oferecendo nossas potências, habilidades e destreza. Pagamos impostos diretos e indiretos, contribuindo com o financiamento dos serviços públicos como qualquer pessoa dentro do território. Com esses fatos em mente, comento algumas perspectivas sobre o processo laboral que iniciei aqui no Brasil.
Inicialmente, aceitei trabalhos informais e passei por situações que constrangeram minha existência pela necessidade de conseguir uma renda para sobreviver. Comecei esta trajetória como entregadora de refeições em bicicleta, sem qualquer proteção trabalhista, e finalizei com problemas de saúde – artroses nos joelhos, que foram agravadas pelo trabalho. Ainda bem que o acesso ao SUS me ajudou a ter o tratamento fisioterapêutico adequado. Depois disso, impossibilitada de continuar entregando refeições, trabalhei como massagista em megaeventos, onde as dificuldades foram outras. Recebia diversas propostas sexuais – feitas por empresários de diversas regiões do Brasil – e escutava frases que se repetiam cerca de 20 vezes por dia, como por exemplo: “o melhor do Chile são as mulheres e o vinho”. Isso sem contar o silenciamento da minha sexualidade, já que o ambiente cis heteronormativo era “sutilmente” imposto nestas empresas.
Estas situações e palavras me afetaram psicologicamente, ativando gatilhos infelizmente comuns a muitas de nós -pelo simples fato de sermos mulheres – algo que ainda pode ser mais agravado quando nossa orientação sexual não faz parte da norma, como é o meu caso. Terminei saindo destes trabalhos por não sentir segurança e, sobretudo, pela “normalização” das empresas sobre o assédio sexual que acontecia diariamente. É bem verdade que, no Brasil, consta na Constituição que toda pessoa pode identificar-se e expressar seu gênero e sexualidade e ser reconhecida e respeitada. Porém, como sabemos, isso nem sempre corresponde à realidade.
Neste país, consegui enxergar não só as diferenças sobre as categorias migratórias e entre os grupos que compõem a comunidade LGBTQIA+, como também as diferenças de tratamento em relação à identidade étnico-racial: fazer parte da população branca e cisgênera me proporcionou várias reflexões dessa interseccionalidade individual enquanto transitava em diversos cenários sociais e culturais.
Narrar do local de fala do privilégio é uma posição paradoxa, fundada nas relações hierarquicamente categorizadas pelas raças desde a colônia, e que serviram historicamente para legitimar o que nós, pessoas brancas cis, usufruimos em detrimento da população negra e indígena. Esta opressão, contudo, pode ser consciente, inconsciente ou deliberadamente confortável do hegemônico.
Estar no meio do caminho do privilégio amplia as possibilidades de compreensão em relação ao local que habita-se: no meu caso, o de uma mulher que pertence à comunidade LGBTQIA+, em movimento migratório, e que levanta bandeiras de (re)existência e cria espaços de fortalecimento. Mas como pessoas brancas cisgêneras, o que estamos fazendo com o poder do nosso privilégio?
É fundamental reconhecer as nossas próprias intersecções e entender que, dependendo do cenário que transitamos e da atitude que tomemos, podemos tanto desconstruir ou continuar sendo cúmplices da discriminação normalizada, seja nas instituições onde trabalhamos ou nos espaços privados. As múltiplas formas de violência atingem diretamente as pessoas que são diversas, seja na sua sexualidade, identidade de gênero, diferenças étnico-raciais, classe, deficiência, diferenças geracionais, status migratório e outros grupos que têm sido minorizados e continuamente oprimidos pela sociedade durante toda a história.
Cada pessoa possui um lugar na sociedade, como também, responsabilidades como agentes de transformação para construir uma cultura mais inclusiva. Estando no meio do caminho, continuo a luta e reivindicação e deixo explícito a branquitude que habita em mim. E, deste lugar e para este lugar das pessoas que identificam-se como brancas, falo: é urgente rever, descristalizar e desmontar as nossas camadas de privilégio para reconhecer o acúmulo histórico de riquezas que nos foi dada e deixar de se esconder na ideologia da meritocracia.