/ Feminino ou masculino: quem decide?

set 25, 2019
Feminino ou masculino: quem decide?

Por

Assim que cheguei no Brasil, 16 anos atrás, falando apenas duas palavras: “obrigada” e “garota” (graças ao Tom Jobim), me dei à tarefa de aprender rápida e corretamente esta língua maravilhosa.

Para quem estudou antropologia, como eu, o aprendizado de um novo idioma não é apenas um ato de comunicação. É uma utilíssima ferramenta de descobrimento, não só da cultura na qual se está mergulhando, mas também da língua e da origem de um povo; mostra nuances surpreendentes ou realidades escancaradas que muitas vezes passam despercebidas para quem já nasce nesse contexto.

Felizmente para mim, o meu espanhol nativo é suficientemente parecido com o português para atingir rapidamente um nível de comunicação aceitável. E dentre as muitíssimas coisas que compartilhamos como descendentes do latim está o fato de dividirmos o mundo por gênero: masculino ou feminino. É uma loucura para quem fala inglês, por exemplo. Quem decidiu que “telefone” é masculino? Quem disse que “televisão” seria uma palavra no feminino? Por quê?

Destaque

Por que as nossas generalizações são no masculino? Mesmo com 99 mulheres e um homem, o que as nossas línguas querem destacar é a preeminência da presença do homem por cima de qualquer número de mulheres. Eis “os cientistas descobriram a cura” e, mesmo sabendo que pode haver mulheres na equipe de cientistas, é inevitável o nosso cérebro visualizar um grupo todo de homens em batas brancas e com “cara de inteligentes”.

Como também levo a sério o assunto dos idiomas, dou aulas de negócios em espanhol e inglês e aproveito para instigar, testar, inspirar e até para pesquisar. Há muito tempo fiz um experimento muito simples. Pedi para uns amigos da Colômbia escreverem cinco palavras para descrever o objeto “árvore” e pedi o mesmo para algumas pessoas da turma de alunos aqui no Brasil.

O pequeno experimento deu o resultado que eu esperava. Como a palavra é masculina em espanhol (el árbol) e feminina em português (a árvore), os termos de cada grupo diferiram bastante e refletiram as características que se associam ao gênero da palavra. Em espanhol as palavras foram coisas como: forte, fálico, protetor, resistente etc. Em português foram: fecunda, frutífera, mãe natureza, vida. O mesmo objeto e visões muito diferentes. A profundidade como o idioma modela o nosso entendimento do mundo é impressionante mesmo.

Feministas chatas

Por isso, o que muitas pessoas acham uma discussão chata das feministas é, de fato, uma das categorias de análise e um dos territórios de mudança mais importantes dentro da conquista para a equidade entre seres humanos. Pois a língua não só reflete a nossa estrutura e a visão de mundo, como influencia nossa capacidade de entendê-lo e imaginá-lo.

Desta forma, têm surgido várias alternativas para contornar, desafiar ou modificar a exigência do gênero e a masculinização dos plurais. Por exemplo, o uso do @ como forma de incluir feminino e masculino na mesma palavra: “amig@s”. Há outras pessoas que preferem a letra xis para eliminar o gênero: “amigxs” – ambas as opções não são amigáveis aos leitores eletrônicos para pessoas com visão reduzida ou nula. Ou, então, quem use o “e” para neutralizar o gênero: “amigues”. E há quem opte pelo longo caminho de especificar por separado: “amigos e amigas”. Há também quem domine a arte do português e consiga para usar generalizações que abarquem todo mundo: “o ser humano” em lugar de “o homem”, as “pessoas gestoras” em vez de “os gestores” etc. As possibilidades são variadas e dependem do público a quem vão dirigidas.

Mulherada vs. Homarada

Da mesma forma me intriga o porquê da existência da palavra “mulherada” e não existir “homarada”. Talvez porque reflete um esforço por esconder as nossas diferenças? Por que assim fica mais fácil ditar o que toda mulher supostamente deve querer, desejar, fazer, almejar e esconder? Porque, uma vez tratadas como rebanho, botar na cabeça que mulher está feita para concorrer e minar uma à outra, e internalizada tal condição, será mais fácil conduzir e influenciar? “Broderagem”, que passa pano e cala sobre qualquer transgressão entre homens nem entra na discussão. Boys will be boys.

Enfim, fica exposto o debate e o questionamento: até que ponto as nossas línguas podem e devem refletir as mudanças na cultura e na sociedade? Até que ponto queremos fazer com que a nossa língua não seja uma língua que perpetue o machismo e, sim, uma que mostre e valorize as nossas diferenças e especificidades? Sim! É possível. Vamos tentar?

Keyllen Nieto. Fundadora e Consultora Sênior da Integra Diversidade.

*Este texto foi publicado originalmente no site Pau Pra Qualquer Obra, em junho de 2013, com umas poucas modificações para atualização de contexto: www.paupraqualquerobra.com.br