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Para as pessoas trans, travestis e não binárias na Argentina, a pandemia da COVID-19 significa o aprofundamento da persistente situação de desigualdade estrutural que historicamente caracteriza suas vidas. As medidas de isolamento preventivo evidenciam as potencialidades e limitações da mesma, e põem de manifesto a necessidade de políticas integrais de mudança cultural que desafiam o fracasso do binarismo que teima em lhes manter, como diria Susy Shock “em cantinhos armados para que entremos comodamente e evitar que lhes questionemos, que ponhamos em xeque, em crise, todos seus paradigmas e privilégios”.
As pessoas trans e travestis na Argentina – assim como acontece em grande parte do planeta – não vivem à margem, mas em “cantinhos criados” fora da mesma. A sociedade patriarcal binária e cisheteronormativa as relegou historicamente à penumbra: à rua, à noite, às “zonas vermelhas”, à informalidade e à rejeição, incluso por parte das suas próprias famílias. Ainda hoje, continuam sendo expulses dos seus lares, da escola e dos espaços laborais em órgãos públicos e privados, relegando as feminilidades trans e travestis à “prostituição como destino”, enquanto para as masculinidades trans e pessoas não binárias a invisibilidade parece ser o seu destino.
Diferentes estudos[2] sobre as condições de vida das pessoas trans e travestis no país – muitos deles realizados com a participação delas próprias – jogam luz sobre a marginalização histórica e cotidiana: 6 de cada 10 abandonam o ensino fundamental e médio por causa da discriminação. Um 64% dos homens trans vive do trabalho informal ou está desempregada. 80% das mulheres trans e travestis se encontra ou esteve em situação de prostituição ou trabalho sexual. Estas pessoas têm uma expectativa de vida de 35 a 42 anos; 83% foram vítimas de graves atos de violência e discriminação policial; 46% vive em moradias precárias; 34% é portador de HIV e tem dificuldades para acessar os tratamentos antirretrovirais; e um 75% já foi vítima de diferentes tipos de assédio e violências, incluso mortes evitáveis como os transfeminicídios y travesticídios. É uma problemática estrutural que, agora com a pandemia, fica ainda mais em evidência.
Contudo, a lei 26.743 de Identidade de Gênero, sancionada no dia 9 de maio de 2012 por uma esmagadora maioria, é qualificada como uma dos principais conquistas do movimento trans e travesti no país e é tida como uma norma de vanguarda que tem permitido avanços em matéria de direitos humanos para este grupo de pessoas. Neste contexto, e lembrando que neste ano faz oito anos da sanção desta lei na Argentina, gostaríamos de propor uma série de reflexões a partir do espírito desta norma, onde temas como a identidade, o corpo, a inclusão, o tratamento digno e a autonomia promovem novas formas de relacionamento com o Estado e a sociedade.
Esta lei reconhece o direto à identidade de gênero autopercibida das pessoas, garantindo o trato digno, a retificação dos registros e o acesso integral à saúde – incluindo intervenções cirúrgicas e tratamentos hormonais – por parte das pessoas trans e travestis, incluso crianças, adolescentes e imigrantes. Agora, é importante apontar que esta norma se caracteriza por reconhecer e salvaguardar os direitos humanos das pessoas trans e travestis, retirando qualquer estigma patologizante e criminal, outorgando plena autonomia e decisão ao respeito de seu desenvolvimento como seres humanos, sendo desnecessária autorização judicial, diagnóstico médico, intervenção corporal e/ou a retificação do DNI – o documento de identificação equivalente ao RG – para a expressão e reconhecimento da sua identidade.
Resultado de uma “férrea disputa cultural de uma ideia trava, trans latinoamericana que se colocou em discussão, ao mesmo tempo em que se conquistavam leis e se promulgavam decretos”, a lei 26.743 é uma conquista. Esta batalha, por uma parte, buscava terminar com a violência policial e as detenções arbitrárias que se realizavam sob a figura dos decretos policiais, revogados na sua maioria no fim dos anos noventa. Além disso, buscava trabalhar pelo reconhecimento estatal e social das identidades travesti e trans, sendo a primeira arena desta luta o marco do movimento LGBT nos anos noventa.
Desde que a Lei de Identidade de Gênero foi promulgada pode se afirmar que profundos avanços foram conquistados. Mais de 9.000 pessoas já realizaram a retificação dos seus documentos (da Certidão de Nascimento e do Documento Nacional de Identidade) de acordo com sua identidade de gênero autopercibida, dentre elas cerca de 100 menores de idade e mais de 124 imigrantes. Centenas de casos em escolas, universidades, empresas, clubes desportivos e em outros âmbitos, amparados na norma colocaram em discussão e garantiram em grande parte o respeito ao direito à identidade de gênero. Além disso, já foram realizados diferentes pedidos para o reconhecimento de outras identidades de gênero como “feminilidade travesti” ou “gêneros não binários”, situações que foram levadas à justiça, e que ainda buscam uma solução definitiva no Registro Nacional de Pessoas. Por primeira vez no país, um assassinato, o da ativista Amancay Diana Sacayán, foi caracterizado e condenado como “travesticídio”. E, nestes tempos de pandemia, o Ministério da Saúde da Nação exige que se respeite a identidade de gênero das pessoas atendidas por coronavírus no marco da legislação vigente, garantindo um tratamento digno e respeitoso das pessoas trans, travestis e não binárias.
Pode-se afirmar também que a Lei de Identidade de Gênero consolidou uma base para fortalecer outras demandas como as de inclusão laboral. Desta forma, tem se trabalhado em prol da promulgação de leis de cotas para trans e travestis no âmbito do Estado e, ainda que não tenha se conquistado uma lei nacional, há 5 províncias – dentre elas Buenos Aires – e 42 municípios que já as possuem. Como a maioria destas leis ainda é recente – e/ou enfrentam resistência para sua implementação -, já podem se encontrar pessoas trans e travestis em diferentes níveis de Estado em cargos de direção municipais, provinciais e nacionais. Apesar desta ser uma grande conquista, não significa ainda a incorporação massiva, senão que se encontra concentrada nas áreas de gênero e diversidade sexual principalmente. Da mesma maneira, no âmbito empresarial, a inclusão laboral trans e travesti continua sendo uma dívida pendente. Ainda que a temática vem ganhando importância, as baixas taxas de culminação do ensino médio e os preconceitos ao interior das organizações, dentre outros fatores, fazem com que a incorporação ao trabalho seja muito tímida, salvo algumas honrosas exceções.
De tal forma, encontra-se que, apesar de tais avanços promovidos pela Lei de Identidade de Gênero, a maior parte da população trans e travesti se encontra em situação de vulnerabilidade. Frente a este panorama de ausência histórica do Estado, no contexto atual diferentes programas de auxílio orientados à população travesti e trans foram implementados como resposta à pandemia. No contexto da emergência sanitária, 3.536 pessoas deste grupo foram incluídas no programa “Potenciar Trabajo”[1]; 2.835 receberam reforços alimentares em distintas províncias do país em articulação com organizações sociais e governos locais e, adicionalmente, tem se trabalhado para garantir a continuidade dos tratamentos hormonais observando as normas de proteção contra a COVID-19. Além disso, realizaram-se intervenções para evitar mais de 120 despejos; atendeu-se a situação de pessoas travestis e trans privadas da liberdade; e está se prestando assistência para a regularização dos trâmites migratórios de 223 pessoas travestis e trans por parte de algumas organizações da sociedade civil e do Estado. Contudo, a dimensão e complexidade da problemática em muitos casos excede os esforços realizados.
Entendemos que, apesar de várias destas medidas ainda serem insuficientes, a prestação de contas, a articulação social e o compartilhamento de estratégias no âmbito nacional e internacional são ações fundamentais para avançarmos de forma mais efetiva e humana, especialmente no atual contexto de aprofundamento das vulnerabilidades. Esperamos que a nossa contribuição possa servir de base e inspiração para o avanço das ações protetivas e inclusivas no Brasil e nos colocamos à disposição para eventuais esclarecimentos ou sugestões.
Eduardo Otero Torres. Consultor da Nodos Argentina. https://www.nodosconsultora.com/
[1] O programa “Potenciar Trabajo” do Ministério de Desenvolvimento Social, com 4.000 feminilidades trans e travestis titulares de direitos, consiste na concessão de um salário social complementar, correspondente a 50% do Salário Mínimo, Vital e Móbil, com objetivo de satisfazer as necessidades básicas e de fortalecer as iniciativas produtivas implementadas pelas pessoas beneficiárias e tem como outro dos seus objetivos o acesso à finalização da educação formal.